quarta-feira, 24 de abril de 2024

A Busca da Verdade

 

O evangelista Lucas, nos Atos dos Apóstolos, narra a chegada de Paulo a Atenas, em uma de suas viagens missionárias. De acordo com o Papa João Paulo II (1920-2005), “a cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio do querigma...”.[1] O apóstolo disse:

 

Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: “Ao Deus desconhecido”. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos” (Atos 17,22-23, BJ).

 

Paulo, com este ponto de partida, falou aos atenienses de Deus enquanto Criador, isto é, como aquele que transcende tudo e dá vida a tudo. Depois, o apóstolo continuou o seu discurso afirmando:

 

De um só ele fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, fixando os tempos anteriormente determinados e os limites do seu habitat. Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo se às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um de nós (Atos 17,26-27, BJ).

 

Com as palavras acima, “o Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus.”[2] O desejo do ser humano por Deus é reconhecido em documentos da Igreja Católica. Por exemplo, no Catecismo da Igreja Católica, se lê: “O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar.”[3] Em outro lugar, está escrito: “O homem está à procura de Deus. Pela criação, Deus chama todo ser do nada à existência.”[4] Sobre o ser humano, Davi declarou: “E o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e beleza” (Salmo 8,6, BJ). Depois dos anjos, os seres humanos são capazes de reconhecer, também com Davi, que “Iahweh, Senhor nosso, quão poderoso é teu nome em toda a terra” (Salmo 8,2, BJ). Portanto, conclui o Catecismo: “Mesmo depois de ter perdido a semelhança com Deus por seu pecado, o homem continua sendo um ser feito à imagem de seu Criador. Conserva o desejo daquele que o chama à existência. Todas as religiões testemunham essa procura essencial dos homens.”[5]

João Paulo II explica esta busca da verdade pelo ser humano com argumentos muito interessantes. Primeiramente, ele afirma que as pessoas são santificadas pela obediência à verdade: “Chamados à salvação pela fé em Jesus Cristo, ‘luz verdadeira que a todo homem ilumina’ (João 1,9), os homens tornam-se ‘luz no Senhor’ e ‘filhos da luz’ (Ef 5,8) e santificam-se pela ‘obediência à verdade’ (1 Pd 1,22).”[6] Em segundo lugar, ele reconhece que, por causa do pecado, a capacidade humana para reconhecer a verdade fica ofuscada:

 

Esta obediência nem sempre é fácil. Na sequência daquele misterioso pecado de origem, cometido por instigação de Satanás, que é “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44), o homem é continuamente tentado a desviar o seu olhar do Deus vivo e verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1,9), trocando “a verdade de Deus pela mentira” (Rm 1,25); então também a sua capacidade para conhecer a verdade fica ofuscada, e enfraquecida a sua vontade para se submeter a ela. E assim, abandonando-se ao relativismo e ao ceticismo (cf. Jo 18,38), ele vai à procura de uma ilusória liberdade fora da própria verdade.[7]

 

Por fim, em terceiro lugar, o Papa reconhece que o pecado não pode eliminar do ser humano, de modo completo, a sede de alcançar um conhecimento verdadeiro: “Mas nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente do homem a luz de Deus Criador. Nas profundezas do seu coração, permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento.”[8]

A Constituição Pastoral Gaudium et spes declarou que o ser humano busca a Deus. A razão da dignidade do ser humano é a vocação dele à união com Deus:

 

A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus. É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, e por ele, por amor, constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador.[9]

 

Por causa da sua vocação à união com Deus, cada pessoa é convidada a dialogar ele. Só pode viver plenamente segundo a verdade, aquele que reconhece que foi criado por Deus por amor e se entrega ao seu Criador. O Papa Bento XVI narra este desejo do ser humano por Deus de forma poética: “O homem tem em si uma sede de infinito, uma saudade de eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impelem rumo ao Absoluto; o homem tem si o desejo de Deus.”[10] Antes, o Papa havia escrito:

 

O homem sabe que não pode responder sozinho à sua necessidade fundamental de compreender. Por mais que se tenha iludido e que ainda se iluda que é autossuficiente, contudo ele faz a experiência de que não é suficiente a si mesmo. Tem necessidade de se abrir ao outro, a algo ou a alguém que possa doar-lhe quanto lhe falta, deve sair de si mesmo rumo Àquele que é capaz de satisfazer a amplidão e a profundidade do seu desejo.[11]

 

Cada pessoa tem a necessidade de se abrir ao outro. Isto é também verdade no âmbito espiritual: é preciso se abrir ao transcendente, ao ser divino que é capaz de satisfazer a amplidão e a profundidade do desejo humano pela eternidade. “Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao infinito.”[12] Uma observação comprovará que o ser humano demonstrou, de vários modos e em tempos diversos, que conseguia dar voz ao seu desejo íntimo pela eternidade, pelo transcendente, enfim, pelo próprio Deus. Cada pessoa pode se servir de vários canais para exprimir a sua ansiosa procura. Por exemplo, a literatura, a música, a pintura, a escultura, a arquitetura e em outras realizações da inteligência criadora humana. “Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do homem.”[13]

O filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) possui uma famosa frase: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber.”[14] Tomás de Kempis (1379-1471), monge católico alemão, sobre a frase, comentou: “Todo homem tem o desejo natural de saber, mas que vale a ciência sem o temor de Deus?”[15] O conhecimento, para o cristão, é ligado à pessoa de Deus, no sentido de que dele vem a capacidade para conhecer de forma correta, visando a transformação de um mundo melhor. Então, “‘todos os homens desejam saber’, e o objeto próprio desse desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que cada um tem em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas.”[16] De toda criação visível, o ser humano é exclusivamente o ser capaz não apenas de saber, mas também de saber que sabe. Por isso, cada pessoa se interessa pela verdade real daquilo que vê. “Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito.”[17]

Agostinho de Hipona (354-430) reconheceu que é natural que o ser humano busque a verdade. Aliás, “todos os seus trabalhos foram orientados para a apreensão da verdade cristã, na mais estreita união à autoridade eclesiástica, a qual, por sua parte, seguiu amplamente a Agostinho.”[18] Agostinho, um grande exemplo, foi obediente à autoridade eclesiástica. Encômios a ele não faltam. Eis alguns. Os especialistas em patrologia, Berthold Altaner (1885-1964) e Alfred Stuiber (1912-1981), disseram: “Agostinho é o mais exímio filósofo dentre os Padres da Igreja e, presumivelmente, o mais insigne teólogo de toda a Igreja.”[19] Agostino Trapè (1915-1987), teólogo católico italiano, escreveu: “Indubitavelmente, Agostinho é o maior dos Padres e um dos gênios mais elevados da humanidade. Sua influência sobre os pósteros foi contínua e profunda.”[20] Joseph Ratzinger (1927-2022), teólogo católico alemão, disse que Agostinho “era um verdadeiro bispo. Escreveu também livros enormes, de modo que nos interrogamos como ele foi capaz de fazer isso além de todas as coisas do dia-a-dia de que tinha de tratar.”[21] Em Agostinho “... o homem apaixonado, que sofre, que interroga, está sempre presente, e cada pessoa pode identificar-se com ele.”[22] Agostinho ensinou que ninguém pode ficar indiferente quanto a verdade. Para ele, Deus é verdade e, portanto, a fonte de toda verdade. Ele escreveu: “Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que é verdadeiro.”[23] E: “... todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor. Essa verdade, uma vez conhecida e professada, o fará rejeitar as ficções supersticiosas que se encontram até nos Livros sagrados.”[24] Nas Confissões, de modo interessante, Agostinho escreveu:

 

Pergunto a todos se preferem gozar da verdade ou da falsidade. E todos com firme resolução dizem preferir a verdade, como também afirmam querer ser felizes. Felicidade é gozo da verdade, o que significa gozar de ti, que és a verdade, “ó Deus, minha luz e salvação da minha face”. Essa felicidade, essa vida que é a única feliz, todos a querem, todos querem a alegria que provém da verdade. Conheci muitos com desejo de enganar aos outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado. Onde conheceram essa felicidade, senão onde conheceram a verdade? Se de fato não querem ser enganados, é porque amam também a verdade. E já que amam a felicidade que nada mais é que a alegria oriunda da verdade, amam certamente também a verdade.[25]

 

As palavras de Agostinho trazem a seguinte reflexão: a felicidade consiste em viver a verdade, que é Deus. O ser humano busca a verdade. Assim, ele pode até querer enganar os outros, mas sua procura pela verdade o faz perenemente desconfiar se alguém o está enganando. Uma pessoa alcança a idade adulta quando consegue discernir, através de seus próprios meios, entre o que é verdadeiro e o que é falso, formando, deste modo, um juízo pessoal a respeito da realidade objetiva das coisas.[26]

A busca da verdade fornece combustível para a realização de pesquisas. João Paulo II afirmou: “Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.”[27] O que é pesquisar? Trata-se de “... reunir informações necessárias para encontrar resposta para uma pergunta e assim chegar à solução de um problema.[28] As pesquisas visam responder alguma pergunta, para que traga a solução de um problema. Diante disso, pode-se afirmar que a pesquisa traz dupla consequência. A primeira é pessoal: “A pesquisa é um trabalho árduo, mas, assim como todo trabalho desafiador bem feito, tanto o processo quanto os resultados trazem enorme satisfação pessoal.”[29] A segunda é social, envolvendo a relação entre pesquisador e seu público:

 

... as pesquisas e seus resultados são também atos sociais, que exigem uma reflexão constante sobre a relação de seu trabalho com os leitores e sobre sua responsabilidade, não apenas perante o tema e você mesmo, mas também perante eles, especialmente se acredita que o que tem a dizer é algo bastante importante para levar os leitores a mudar de vida, modificando o modo de pensar.[30]

 

Para João Paulo II, a pesquisa humana é prova de que existe sincera busca da verdade. Na encíclica Veritatis Splendor, ele escreveu: “Nas profundezas do seu coração [humano], permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento. Prova-o, de modo eloquente, a incansável pesquisa do homem em todas as áreas e setores. Demonstra-o ainda mais a sua busca do sentido da vida.[31] E, na encíclica Fides et Ratio, João Paulo II declarou que a pesquisa é muito importante nos campos teóricos e práticos, pois ela demonstra a procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. No campo prático, “... graças precisamente ao agir ético, a pessoa, se atuar segundo a sua livre e reta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a perfeição. Também neste caso, está em questão a verdade.”[32] É necessário que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, pois apenas estes aperfeiçoam a pessoa, realizando a sua natureza. João Paulo II concluiu: “Não é fechando-se em si mesmo que o homem encontra essa verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de dimensões que o transcendem. Essa é uma condição necessária para que cada um se torne ele mesmo e cresça como pessoa adulta e madura.”[33] É interessante perceber que Antonin-Gilbert Sertillanges (1863-1948), filósofo e teólogo católico francês, também tenha ensinado que uma das características da vocação intelectual é que o trabalhador cristão (um consagrado) não deve ser isolado: “Seja qual for a sua situação, por mais abandonado ou retirado que esteja materialmente, não deve cair na tentação do individualismo, imagem deformada da personalidade cristã.”[34] O estudioso que busca a verdade deve ir além de si mesmo e ter vida social sadia.

Um belo verso do livro de Sabedoria de Salomão afirma: “A sabedoria é radiante, não fenece, facilmente é contemplada por aqueles que a amam e se deixa encontrar por aqueles que a buscam” (6,12, BJ). É encorajador saber que a sabedoria é radiante e se deixa encontrar por aqueles que a buscam. Após encontrada, a sabedoria torna o acesso à verdade mais fácil. E como a verdade se apresenta a nós? A princípio, sob forma interrogativa.[35] “A história do pensamento religioso e filosófico mostra que há apenas um punhado de tópicos fundamentais que são de interesse permanente. As mesmas questões aparecem em todas as gerações e captam a atenção de certos pensadores em todas as culturas.”[36] “Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana...”.[37] As seguintes perguntas sempre foram apreciadas pela humanidade: “Quem sou eu?”; “De onde venho e para onde vou?”; “O que existirá após esta vida?”; “Por que existe o mal?”; “Podemos conhecer?”; “Podemos estar certos do conhecimento que temos?”; “Deus existe ou não?”; “Qual a natureza da substância de que o mundo é feito?”; “Como lidar com as questões éticas?”; e “Que devemos fazer nesta vida?”

As indagações acima podem ser encontradas em diversos lugares: nos escritos sagrados de Israel; nos Vedas e no Avestá, nos escritos dos filósofos chineses Confúcio (551-479 a.C.) e Lao Tse (m. 531 a.C.), na pregação de Buda, nos poemas de Homero (928-898 a.C.), poeta épico da Grécia Antiga, nas tragédias de Eurípides (480-406 a.C.), poeta trágico grego, e Sófocles (496-406 a.C ), dramaturgo grego, e nos tratados filosóficos de Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.).[38] São perguntas realmente essenciais que fundamentam a forma essencial que todas as pessoas interagem com a criação de Deus. Não se pode desenvolver uma civilização sem responder a essas perguntas típicas: todas as religiões e filosofias do passado fizeram sua escolha a partir de um número de respostas possíveis e embasaram nelas suas cosmovisões.[39] Portanto, “são questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efetivamente a orientação que se imprime à existência.”[40] Nenhum ser humano deve se esquivar a estas perguntas fundamentais. Para o cristão, “a resposta somente é possível graças ao esplendor da verdade que brilha no íntimo do espírito humano...”.[41] O salmista Davi explicou: “Sabei que Iahweh põe à parte seu fiel; Iahweh ouve quando eu o invoco” (Salmo 4,7, BJ).

Uma das perguntas mais importantes é: “a vida tem um sentido?” A existência pessoal, à primeira vista, poderia aparecer radicalmente sem sentido. Não seria necessário recorrer aos filósofos do absurdo, nem às provocativas perguntas que encontram-se no livro de Jó para duvidar do sentido da vida. A experiência diária do sofrimento pessoal ou alheio, e ainda a observação de muitos fatos que à luz da razão se revelam inexplicáveis tornam ineludível o dramático problema da questão do sentido da vida. “A isso se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência, para além do fato de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como este, impõe-se a busca de uma resposta exaustiva.”[42] Joseph Ratzinger (1927-2022) refletiu sobre o tema da “morte” em alguns de seus escritos. Em um deles, chamado “Sobre a Teologia da Morte”, ele indicou que a reflexão sobre a morte começa na vida: “Mas precisamente a dedicação à vida inclui também necessariamente um encontro com o fenômeno da morte. Esforçar-se pela vida humana por si mesmo significa também enfrentar a realidade da morte, pois a vida humana está determinada de modo central pela morte.”[43] Ele também escreveu:

 

Portanto, a pergunta pela morte é levantada imperiosamente pela vida mesma. Ela está posta inevitavelmente àqueles para os quais a vida é um verdadeiro cuidado. E se querem cuidar desta vida e conservá-la não só de um modo exterior, mas enchê-la de sentido, dando-lhe a sua verdadeira grandeza e possibilidade, não poderão deixar de lado a pergunta pelo sentido ou a falta de sentido da morte.[44]

 

Em outro texto, chamado ‘Fé, Filosofia e Teologia”, Ratzinger explicou:

 

Tanto a fé quanto a filosofia estão voltadas para a questão primordial do Homem, a pergunta que lhe é dirigida pela morte. A questão da morte é apenas a forma radical da pergunta pelo como do bem viver. É a pergunta pela origem e o destino do Homem: de onde ele vem e para onde vai. A morte é a pergunta que em última análise não pode ser reprimida, e que se faz presente na existência humana como um aguilhão metafísico. O Homem não pode deixar de interrogar-se sobre o significado deste fim.[45]

 

Na encíclica Spe Salvi, de 2007, Bento XVI resumiu o sentimento das perseguições dos cristãos dos primeiros séculos com estas palavras: “Com a morte diante dos olhos, a questão do significado da vida torna-se inevitável.”[46] Percebe-se, aqui, o sentido contrário das duas argumentações anteriores. Se Ratzinger enfatizou a vida para refletir a morte, ele também afirmou que uma possível iminência da morte traz à tona a reflexão sobre o significado da vida. O que ele pretendia ensinar é que a reflexão sobre a morte é válida e precisa ser feita pelas pessoas. Perante a certeza da morte, é necessário que se busque uma resposta exaustiva para a questão de se existirá ou não vida além da morte. João Paulo II refletiu: “Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não.”[47] A partir da morte de Sócrates (469-399 a.C.), filósofo grego, o pensamento filosófico recebeu uma orientação decisiva que durante mais de dois milênios o marcou. “Certamente não é por acaso que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre voltaram a pôr-se esse problema, associado à questão do sentido da vida e da imortalidade.”[48]

Sobre o sentido da vida e da imortalidade, ninguém pode se esquivar – nem o filósofo, nem o “homem comum”. Da resposta alcançada advém uma orientação decisiva da investigação, isto é, a possibilidade ou não de alcançar uma verdade universal. “Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos.”[49] Para além dessa universalidade, o ser humano procura um absoluto capaz de lhe conceder resposta e sentido para toda a sua pesquisa, algo de definitivo, que seja fundamento a tudo mais. Deste modo, o ser humano procura uma explicação definitiva, um valor supremo para além do qual não possa existir ulteriores perguntas ou apelos. “As hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou não, há a necessidade de ancorar a existência a uma verdade reconhecida como definitiva, que forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.”[50] Os filósofos procuraram descobrir e exprimir tal verdade durante os séculos. Eles criaram um sistema ou uma escola de pensamento. Contudo, além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões nas quais os seres humanos procuram formular a sua filosofia. Por exemplo: convicções ou experiências pessoais, tradições familiares e culturais, ou mesmo itinerários existenciais vividos debaixo da autoridade de um mestre. Em todas estas manifestações, subjaz perenemente o desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.[51]

 

Heber Ramos Bertuci

24 de abril de 2024

 

 

Abreviatura

 

BJ – Bíblia de Jerusalém

 

Referências Bibliográficas

 

AGOSTINHO. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. (Coleção Patrística, n. 17).

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 2006. (Coleção Clássicos de Bolso).

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BENTO XVI. Spe Salvi. São Paulo: Paulus / Loyola, 2007. [Encíclica promulgada em 30 de novembro de 2007]. (Coleção Documentos do Magistério).

Booth, Wayne C.; Colomb, Gregory G.; Williams, Joseph M. A arte da pesquisa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção Ferramentas).

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2006.

COSTA, Lourenço (Org.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. (Coleção Documentos da Igreja, n. 1).

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JOÃO PAULO II. Veritatis Splendor. 8. ed. São Paulo: Paulinas, 2006. [Promulgada em 06 de agosto de 1993]. (Coleção A voz do Papa, n. 130).

RATZINGER, Joseph. Fé, filosofia e teologia (Conferência de 1984). In: Idem. Natureza e missão da teologia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13-26.

RATZINGER, Joseph. O Sal da terra (o Cristianismo e a Igreja Católica no limiar do terceiro milênio): um diálogo com Peter Seewald. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

RATZINGER, Joseph. Sobre a teologia da morte (1959). In: Idem. Dogma e anúncio. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2013. p. 239-250.

SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A vida intelectual. Campinas: Kírion, 2019.

TOMÁS DE KEMPIS. Imitação de Cristo. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica, 2019.

TRAPÈ, Agostino. Santo Agostinho. In: INSTITUTUM PATRISTICUM AUGUSTINIANUM. Patrologia (os Padres Latinos). Rio de Janeiro: Centro Dom Bosco, 2023. p. 494-664. (Vol. IV: do Concílio de Nicéia ao Concílio de Calcedônia).

WRIGHT, Robert K. McGregor. A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.



Notas:

[1] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 24.

[2] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 24.

[3] Catecismo da Igreja Católica, 27.

[4] Catecismo da Igreja Católica, 2566, grifo na obra.

[5] Catecismo da Igreja Católica, 2566.

[6] JOÃO PAULO II, Veritatis Splendor, 1.

[7] JOÃO PAULO II, Veritatis Splendor, 1.

[8] JOÃO PAULO II, Veritatis Splendor, 1.

[9] Gaudium et spes, 19,1.

[10] BENTO XVI, O homem em oração (2) [Audiência Geral, 11/05/2011], p. 21.

[11] BENTO XVI, O homem em oração (2) [Audiência Geral, 11/05/2011], p. 21.

[12] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 24.

[13] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 24.

[14] ARISTÓTELES, Metafísica, I, 1.

[15] TOMÁS DE KEMPIS, Imitação de Cristo, I, 2, 1.

[16] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 25.

[17] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 25.

[18] ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred, Patrologia, p. 415.

[19] ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred, Patrologia, p. 415.

[20] TRAPÈ, Agostino, Santo Agostinho, p. 494.

[22] RATZINGER, Joseph, O Sal da terra, p. 50.

[23] AGOSTINHO, Solilóquios, I, 1, 3.

[24] AGOSTINHO, A doutrina cristã, II, 19, 28.

[25] AGOSTINHO, Confissões, X, 23, 33.

[26] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 25.

[27] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 25.

[28] Booth, Wayne; Colomb, Gregory; Williams, Joseph, A arte da pesquisa, p. 7, grifo do autor.

[29] Booth, Wayne; Colomb, Gregory; Williams, Joseph, A arte da pesquisa, p. 6.

[30] Booth, Wayne; Colomb, Gregory; Williams, Joseph, A arte da pesquisa, p. 6.

[31] JOÃO PAULO II, Veritatis Splendor, 1, grifo na obra.

[32] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 25.

[33] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 25.

[34] SERTILLANGES, Antonin-Dalmace, A vida intelectual, p. 33.

[35] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 26.

[36] WRIGHT, Robert, A soberania banida, p. 19.

[37] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 1.

[38] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 1.

[39] WRIGHT, Robert, A soberania banida, p. 19.

[40] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 1.

[41] JOÃO PAULO II, Veritatis Splendor, 2.

[42] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 1.

[44] RATZINGER, Joseph, Sobre a teologia da morte (1959), p. 240.

[46] BENTO XVI, Spe salvi, 6.

[47] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 26.

[48] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 26.

[49] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 27.

[50] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 27.

[51] JOÃO PAULO II, Fides et ratio, 27.


A Busca da Verdade

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