O
evangelista Lucas, nos Atos dos Apóstolos, narra a chegada de Paulo a Atenas,
em uma de suas viagens missionárias. De acordo com o Papa João Paulo II
(1920-2005), “a cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que
representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo
prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio do
querigma...”.[1]
O apóstolo disse:
Cidadãos atenienses! Vejo que, sob
todos os aspectos sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa
cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a
inscrição: “Ao Deus desconhecido”. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto
venho eu anunciar-vos” (Atos 17,22-23, BJ).
Paulo,
com este ponto de partida, falou aos atenienses de Deus enquanto Criador, isto
é, como aquele que transcende tudo e dá vida a tudo. Depois, o apóstolo
continuou o seu discurso afirmando:
De um só ele fez toda a raça humana
para habitar sobre toda a face da terra, fixando os tempos anteriormente
determinados e os limites do seu habitat. Tudo isto para que procurassem a
divindade e, mesmo se às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora
não esteja longe de cada um de nós (Atos 17,26-27, BJ).
Com
as palavras acima, “o Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre
guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo
e a nostalgia de Deus.”[2] O desejo do ser humano por
Deus é reconhecido em documentos da Igreja Católica. Por exemplo, no Catecismo
da Igreja Católica, se lê: “O desejo de Deus está inscrito no coração do
homem, já que o homem é criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair
o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a
felicidade que não cessa de procurar.”[3] Em outro lugar, está
escrito: “O homem está à procura de Deus. Pela criação, Deus chama todo
ser do nada à existência.”[4] Sobre o ser humano, Davi
declarou: “E o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e
beleza” (Salmo 8,6, BJ). Depois dos anjos, os seres humanos são capazes de
reconhecer, também com Davi, que “Iahweh, Senhor nosso, quão poderoso é teu
nome em toda a terra” (Salmo 8,2, BJ). Portanto, conclui o Catecismo: “Mesmo
depois de ter perdido a semelhança com Deus por seu pecado, o homem continua
sendo um ser feito à imagem de seu Criador. Conserva o desejo daquele que o
chama à existência. Todas as religiões testemunham essa procura essencial dos
homens.”[5]
João
Paulo II explica esta busca da verdade pelo ser humano com argumentos muito
interessantes. Primeiramente, ele afirma que as pessoas são santificadas pela
obediência à verdade: “Chamados à salvação pela fé em Jesus Cristo,
‘luz verdadeira que a todo homem ilumina’ (João 1,9), os homens tornam-se ‘luz
no Senhor’ e ‘filhos da luz’ (Ef 5,8) e santificam-se pela ‘obediência à
verdade’ (1 Pd 1,22).”[6] Em segundo lugar, ele reconhece que, por causa do pecado, a
capacidade humana para reconhecer a verdade fica ofuscada:
Esta
obediência nem sempre é fácil. Na sequência daquele misterioso pecado de
origem, cometido por instigação de Satanás, que é “mentiroso e pai da mentira”
(Jo 8,44), o homem é continuamente tentado a desviar o seu olhar do Deus vivo e
verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1,9), trocando “a verdade de
Deus pela mentira” (Rm 1,25); então também a sua capacidade para conhecer a
verdade fica ofuscada, e enfraquecida a sua vontade para se submeter a ela. E
assim, abandonando-se ao relativismo e ao ceticismo (cf. Jo 18,38), ele vai à
procura de uma ilusória liberdade fora da própria verdade.[7]
Por
fim, em terceiro lugar, o Papa reconhece que o pecado não pode eliminar do ser
humano, de modo completo, a sede de alcançar um conhecimento verdadeiro: “Mas nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente do
homem a luz de Deus Criador. Nas profundezas do seu coração, permanece sempre a
nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu
conhecimento.”[8]
A
Constituição Pastoral Gaudium et spes declarou que o ser humano busca a Deus. A razão da dignidade do ser humano é a vocação dele à
união com Deus:
A
razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com
Deus. É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com
Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, e por ele, por
amor, constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade,
se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador.[9]
Por
causa da sua vocação à união com Deus, cada pessoa é convidada a dialogar ele.
Só pode viver plenamente segundo a verdade, aquele que reconhece que foi criado
por Deus por amor e se entrega ao seu Criador. O Papa Bento XVI narra este
desejo do ser humano por Deus de forma poética: “O homem tem em si uma sede de
infinito, uma saudade de eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor,
uma necessidade de luz e de verdade, que o impelem rumo ao Absoluto; o homem
tem si o desejo de Deus.”[10] Antes, o Papa havia
escrito:
O homem sabe que não pode responder
sozinho à sua necessidade fundamental de compreender. Por mais que se tenha
iludido e que ainda se iluda que é autossuficiente, contudo ele faz a
experiência de que não é suficiente a si mesmo. Tem necessidade de se abrir ao
outro, a algo ou a alguém que possa doar-lhe quanto lhe falta, deve sair de si
mesmo rumo Àquele que é capaz de satisfazer a amplidão e a profundidade do seu
desejo.[11]
Cada
pessoa tem a necessidade de se abrir ao outro. Isto é também verdade no âmbito
espiritual: é preciso se abrir ao transcendente, ao ser divino que é capaz de
satisfazer a amplidão e a profundidade do desejo humano pela eternidade. “Existe,
portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de
partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender
até ao infinito.”[12] Uma observação comprovará
que o ser humano demonstrou, de vários modos e em tempos diversos, que
conseguia dar voz ao seu desejo íntimo pela eternidade, pelo transcendente,
enfim, pelo próprio Deus. Cada pessoa pode se servir de vários canais para
exprimir a sua ansiosa procura. Por exemplo, a literatura, a música, a pintura,
a escultura, a arquitetura e em outras realizações da inteligência criadora
humana. “Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este
movimento, exprimindo, com os meios e segundo as modalidades científicas que
lhe são próprias, este desejo universal do homem.”[13]
O
filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) possui uma famosa frase: “Todos os
homens, por natureza, tendem ao saber.”[14] Tomás
de Kempis (1379-1471), monge católico alemão, sobre a frase, comentou: “Todo
homem tem o desejo natural de saber, mas que vale a ciência sem o temor de
Deus?”[15] O conhecimento, para o cristão, é ligado à
pessoa de Deus, no sentido de que dele vem a capacidade para conhecer de forma correta,
visando a transformação de um mundo melhor. Então, “‘todos os homens desejam
saber’, e o objeto próprio desse desejo é a verdade. A própria vida quotidiana
demonstra o interesse que cada um tem em descobrir, para além do que ouve, a
realidade das coisas.”[16] De toda criação visível, o ser humano é
exclusivamente o ser capaz não apenas de saber, mas também de saber que sabe.
Por isso, cada pessoa se interessa pela verdade real daquilo que vê. “Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à
verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário,
consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito.”[17]
Agostinho de
Hipona (354-430) reconheceu que é natural que o ser humano busque a verdade. Aliás,
“todos os seus trabalhos foram orientados para a apreensão da verdade cristã,
na mais estreita união à autoridade eclesiástica, a qual, por sua parte, seguiu
amplamente a Agostinho.”[18] Agostinho, um grande exemplo, foi obediente à
autoridade eclesiástica. Encômios a ele não faltam. Eis alguns. Os especialistas
em patrologia, Berthold Altaner (1885-1964) e Alfred
Stuiber (1912-1981), disseram: “Agostinho é o mais exímio filósofo dentre
os Padres da Igreja e, presumivelmente, o mais insigne teólogo de toda a Igreja.”[19] Agostino Trapè (1915-1987),
teólogo católico italiano, escreveu: “Indubitavelmente, Agostinho é o maior dos
Padres e um dos gênios mais elevados da humanidade. Sua influência sobre os
pósteros foi contínua e profunda.”[20] Joseph Ratzinger (1927-2022), teólogo católico
alemão, disse que Agostinho “era um verdadeiro bispo. Escreveu
também livros enormes, de modo que nos interrogamos como ele foi capaz de fazer
isso além de todas as coisas do dia-a-dia de que tinha de tratar.”[21] Em Agostinho “... o
homem apaixonado, que sofre, que interroga, está sempre presente, e cada pessoa
pode identificar-se com ele.”[22] Agostinho ensinou que
ninguém pode ficar indiferente quanto a verdade. Para ele, Deus é verdade e,
portanto, a fonte de toda verdade. Ele escreveu: “Eu te
invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que
é verdadeiro.”[23] E: “... todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a
Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor. Essa
verdade, uma vez conhecida e professada, o fará rejeitar as ficções
supersticiosas que se encontram até nos Livros sagrados.”[24] Nas Confissões,
de modo interessante, Agostinho escreveu:
Pergunto
a todos se preferem gozar da verdade ou da falsidade. E todos com firme resolução
dizem preferir a verdade, como também afirmam querer ser felizes. Felicidade é
gozo da verdade, o que significa gozar de ti, que és a verdade, “ó Deus, minha
luz e salvação da minha face”. Essa felicidade, essa vida que é a única feliz,
todos a querem, todos querem a alegria que provém da verdade. Conheci muitos
com desejo de enganar aos outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser
enganado. Onde conheceram essa felicidade, senão onde conheceram a verdade? Se
de fato não querem ser enganados, é porque amam também a verdade. E já que amam
a felicidade que nada mais é que a alegria oriunda da verdade, amam certamente
também a verdade.[25]
As palavras de Agostinho trazem a seguinte reflexão: a felicidade
consiste em viver a verdade, que é Deus. O ser humano busca a verdade. Assim, ele
pode até querer enganar os outros, mas sua procura pela verdade o faz
perenemente desconfiar se alguém o está enganando. Uma pessoa alcança a idade
adulta quando consegue discernir, através de seus próprios meios, entre o que é
verdadeiro e o que é falso, formando, deste modo, um juízo pessoal a respeito
da realidade objetiva das coisas.[26]
A busca da verdade fornece combustível para a realização de
pesquisas. João Paulo II afirmou: “Está aqui o motivo de muitas pesquisas,
particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a
resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade
inteira.”[27] O que é pesquisar? Trata-se
de “... reunir informações necessárias para encontrar resposta para uma
pergunta e assim chegar à solução de um problema.”[28] As pesquisas visam
responder alguma pergunta, para que traga a solução de um problema. Diante
disso, pode-se afirmar que a pesquisa traz dupla consequência. A primeira é
pessoal: “A pesquisa é um trabalho árduo, mas, assim como todo trabalho
desafiador bem feito, tanto o processo quanto os resultados trazem enorme
satisfação pessoal.”[29] A segunda é social,
envolvendo a relação entre pesquisador e seu público:
... as pesquisas e seus resultados são também
atos sociais, que exigem uma reflexão constante sobre a relação de seu trabalho
com os leitores e sobre sua responsabilidade, não apenas perante o tema e você
mesmo, mas também perante eles, especialmente se acredita que o que tem a dizer
é algo bastante importante para levar os leitores a mudar de vida, modificando
o modo de pensar.[30]
Para João Paulo II, a pesquisa humana é prova
de que existe sincera busca da verdade. Na encíclica Veritatis Splendor,
ele escreveu: “Nas profundezas do seu coração [humano], permanece sempre a
nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu
conhecimento. Prova-o, de modo eloquente, a incansável
pesquisa do homem em todas as áreas e setores. Demonstra-o ainda mais a sua
busca do sentido da vida.”[31] E, na encíclica Fides et Ratio, João Paulo II declarou que a
pesquisa é muito importante nos campos teóricos e práticos, pois ela demonstra
a procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. No campo prático,
“... graças precisamente ao agir ético, a pessoa, se atuar segundo a sua livre
e reta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a
perfeição. Também neste caso, está em questão a verdade.”[32] É necessário que os
valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, pois apenas estes
aperfeiçoam a pessoa, realizando a sua natureza. João Paulo II concluiu: “Não é fechando-se em si mesmo que o homem encontra essa
verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de dimensões que o
transcendem. Essa é uma condição necessária para que cada um se torne ele mesmo
e cresça como pessoa adulta e madura.”[33] É interessante
perceber que Antonin-Gilbert
Sertillanges (1863-1948), filósofo e teólogo católico francês, também tenha ensinado que uma das características da
vocação intelectual é que o trabalhador cristão (um consagrado) não deve ser isolado:
“Seja qual for a sua situação, por mais abandonado ou retirado que esteja
materialmente, não deve cair na tentação do individualismo, imagem deformada da
personalidade cristã.”[34] O estudioso que busca a
verdade deve ir além de si mesmo e ter vida social sadia.
Um belo verso do livro de Sabedoria de Salomão afirma: “A
sabedoria é radiante, não fenece, facilmente é contemplada por aqueles que a
amam e se deixa encontrar por aqueles que a buscam” (6,12, BJ). É encorajador
saber que a sabedoria é radiante e se deixa encontrar por aqueles que a buscam.
Após encontrada, a sabedoria torna o acesso à verdade mais fácil. E como a
verdade se apresenta a nós? A princípio, sob forma interrogativa.[35] “A história do
pensamento religioso e filosófico mostra que há apenas um punhado de tópicos
fundamentais que são de interesse permanente. As mesmas questões aparecem em
todas as gerações e captam a atenção de certos pensadores em todas as culturas.”[36] “Aliás,
basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como
surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas
diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência
humana...”.[37] As seguintes perguntas
sempre foram apreciadas pela humanidade: “Quem sou eu?”; “De onde venho e para
onde vou?”; “O que existirá após esta vida?”; “Por que existe o mal?”; “Podemos
conhecer?”; “Podemos estar certos do conhecimento que temos?”; “Deus existe ou
não?”; “Qual a natureza da substância de que o mundo é feito?”; “Como lidar com
as questões éticas?”; e “Que devemos fazer nesta vida?”
As indagações acima podem ser encontradas em diversos lugares: nos
escritos sagrados de Israel; nos Vedas e no Avestá, nos escritos dos filósofos
chineses Confúcio (551-479 a.C.) e Lao Tse (m. 531 a.C.), na pregação de Buda,
nos poemas de Homero (928-898 a.C.), poeta épico da Grécia Antiga, nas
tragédias de Eurípides (480-406 a.C.), poeta trágico grego, e Sófocles (496-406
a.C ), dramaturgo grego, e nos tratados filosóficos de Platão (428-348 a.C.) e
Aristóteles (384-322 a.C.).[38] São perguntas
realmente essenciais que fundamentam a forma essencial que todas as pessoas
interagem com a criação de Deus. Não se pode desenvolver uma civilização sem
responder a essas perguntas típicas: todas as religiões e filosofias do passado
fizeram sua escolha a partir de um número de respostas possíveis e embasaram
nelas suas cosmovisões.[39] Portanto, “são
questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde
sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende
efetivamente a orientação que se imprime à existência.”[40] Nenhum ser humano deve
se esquivar a estas perguntas fundamentais. Para o cristão, “a resposta somente é possível graças ao esplendor da
verdade que brilha no íntimo do espírito humano...”.[41] O salmista Davi
explicou: “Sabei que Iahweh põe à parte seu fiel; Iahweh ouve quando eu o
invoco” (Salmo 4,7, BJ).
Uma das perguntas mais importantes é: “a vida tem um sentido?” A
existência pessoal, à primeira vista, poderia aparecer radicalmente sem
sentido. Não seria necessário recorrer aos filósofos do absurdo, nem às
provocativas perguntas que encontram-se no livro de Jó para duvidar do sentido
da vida. A experiência diária do sofrimento pessoal ou alheio, e ainda a
observação de muitos fatos que à luz da razão se revelam inexplicáveis tornam
ineludível o dramático problema da questão do sentido da vida. “A isso se deve acrescentar que a primeira verdade
absolutamente certa da nossa existência, para além do fato de existirmos, é a
inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como este,
impõe-se a busca de uma resposta exaustiva.”[42] Joseph Ratzinger
(1927-2022) refletiu sobre o tema da “morte” em alguns de seus escritos. Em um
deles, chamado “Sobre a Teologia da Morte”, ele indicou que a reflexão sobre a
morte começa na vida: “Mas precisamente a dedicação à vida inclui também
necessariamente um encontro com o fenômeno da morte. Esforçar-se pela vida
humana por si mesmo significa também enfrentar a realidade da morte, pois a
vida humana está determinada de modo central pela morte.”[43] Ele também escreveu:
Portanto, a pergunta pela morte é levantada imperiosamente
pela vida mesma. Ela está posta inevitavelmente àqueles para os quais a vida é
um verdadeiro cuidado. E se querem cuidar desta vida e conservá-la não só de um
modo exterior, mas enchê-la de sentido, dando-lhe a sua verdadeira grandeza e
possibilidade, não poderão deixar de lado a pergunta pelo sentido ou a falta de
sentido da morte.[44]
Em outro texto, chamado ‘Fé, Filosofia e Teologia”, Ratzinger
explicou:
Tanto a fé quanto a filosofia estão voltadas
para a questão primordial do Homem, a pergunta que lhe é dirigida pela morte. A
questão da morte é apenas a forma radical da pergunta pelo como do bem viver. É
a pergunta pela origem e o destino do Homem: de onde ele vem e para onde vai. A
morte é a pergunta que em última análise não pode ser reprimida, e que se faz
presente na existência humana como um aguilhão metafísico. O Homem não pode
deixar de interrogar-se sobre o significado deste fim.[45]
Na encíclica Spe Salvi, de 2007, Bento XVI resumiu o
sentimento das perseguições dos cristãos dos primeiros séculos com estas
palavras: “Com a morte diante dos olhos, a questão do significado da vida
torna-se inevitável.”[46] Percebe-se, aqui, o
sentido contrário das duas argumentações anteriores. Se Ratzinger enfatizou a
vida para refletir a morte, ele também afirmou que uma possível iminência da
morte traz à tona a reflexão sobre o significado da vida. O que ele pretendia
ensinar é que a reflexão sobre a morte é válida e precisa ser feita pelas
pessoas. Perante a certeza da morte, é necessário que se busque uma resposta
exaustiva para a questão de se existirá ou não vida além da morte. João Paulo
II refletiu: “Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer
saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo
permanece para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não.”[47] A partir da morte de
Sócrates (469-399 a.C.), filósofo grego, o pensamento filosófico recebeu uma orientação decisiva que durante
mais de dois milênios o marcou. “Certamente não é por acaso que os filósofos,
perante a realidade da morte, sempre voltaram a pôr-se esse problema, associado
à questão do sentido da vida e da imortalidade.”[48]
Sobre o sentido da vida e da imortalidade, ninguém pode se esquivar
– nem o filósofo, nem o “homem comum”. Da resposta alcançada advém uma
orientação decisiva da investigação, isto é, a possibilidade ou não de alcançar
uma verdade universal. “Por si mesma qualquer verdade,
mesmo parcial, se realmente é verdade, apresenta-se como universal e absoluta.
Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos.”[49] Para além dessa
universalidade, o ser humano procura um absoluto capaz de lhe conceder resposta
e sentido para toda a sua pesquisa, algo de definitivo, que seja fundamento a
tudo mais. Deste modo, o ser humano procura uma explicação definitiva, um valor
supremo para além do qual não possa existir ulteriores perguntas ou apelos. “As
hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que,
admitam-no ou não, há a necessidade de ancorar a existência a uma verdade
reconhecida como definitiva, que forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.”[50] Os filósofos
procuraram descobrir e exprimir tal verdade durante os séculos. Eles criaram um
sistema ou uma escola de pensamento. Contudo, além dos sistemas filosóficos,
existem outras expressões nas quais os seres humanos procuram formular a sua
filosofia. Por exemplo: convicções ou experiências pessoais, tradições
familiares e culturais, ou mesmo itinerários existenciais vividos debaixo da
autoridade de um mestre. Em todas estas manifestações, subjaz perenemente o
desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.[51]
Heber Ramos Bertuci
24 de abril de 2024
Abreviatura
BJ –
Bíblia de Jerusalém
Referências
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SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A vida intelectual. Campinas: Kírion, 2019.
TOMÁS DE KEMPIS. Imitação de Cristo.
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TRAPÈ, Agostino. Santo Agostinho. In:
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Rio de Janeiro: Centro Dom Bosco, 2023. p. 494-664. (Vol. IV: do Concílio de
Nicéia ao Concílio de Calcedônia).
Notas:
[1] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 24.
[2] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 24.
[3] Catecismo da Igreja
Católica, 27.
[4] Catecismo da Igreja
Católica, 2566, grifo na obra.
[5] Catecismo da Igreja
Católica, 2566.
[6] JOÃO PAULO II,
Veritatis Splendor, 1.
[7] JOÃO PAULO II,
Veritatis Splendor, 1.
[8] JOÃO PAULO II,
Veritatis Splendor, 1.
[9] Gaudium et spes,
19,1.
[10] BENTO XVI, O homem em oração (2) [Audiência Geral, 11/05/2011], p.
21.
[11] BENTO XVI, O homem em oração (2) [Audiência Geral, 11/05/2011],
p. 21.
[12] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 24.
[13] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 24.
[14] ARISTÓTELES,
Metafísica, I, 1.
[15] TOMÁS DE KEMPIS, Imitação de Cristo, I, 2, 1.
[16] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 25.
[17] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 25.
[18] ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred, Patrologia, p. 415.
[19] ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred, Patrologia, p. 415.
[20] TRAPÈ, Agostino, Santo Agostinho, p. 494.
[22] RATZINGER, Joseph, O Sal da terra, p. 50.
[23] AGOSTINHO, Solilóquios,
I, 1, 3.
[24] AGOSTINHO, A
doutrina cristã, II, 19, 28.
[25] AGOSTINHO,
Confissões, X, 23, 33.
[26] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 25.
[27] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 25.
[28] Booth, Wayne; Colomb, Gregory; Williams, Joseph, A arte da pesquisa, p.
7, grifo do autor.
[29] Booth, Wayne; Colomb, Gregory; Williams, Joseph, A arte da pesquisa, p.
6.
[30] Booth, Wayne; Colomb, Gregory; Williams, Joseph, A arte da pesquisa, p.
6.
[31] JOÃO PAULO II,
Veritatis Splendor, 1, grifo na obra.
[32] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 25.
[33] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 25.
[34] SERTILLANGES,
Antonin-Dalmace, A vida intelectual, p. 33.
[35] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 26.
[36] WRIGHT, Robert, A soberania banida, p. 19.
[37] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 1.
[38] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 1.
[39] WRIGHT, Robert, A soberania banida, p. 19.
[40] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 1.
[41] JOÃO PAULO II,
Veritatis Splendor, 2.
[42] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 1.
[44] RATZINGER, Joseph, Sobre a teologia da morte (1959), p. 240.
[46] BENTO XVI, Spe
salvi, 6.
[47] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 26.
[48] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 26.
[49] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 27.
[50] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 27.
[51] JOÃO PAULO II, Fides
et ratio, 27.